Sobre a produção acadêmica em massa

Alef Santana
4 min readSep 15, 2021

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Desde o primeiro dia que comecei a frequentar o curso de bacharelado em Enfermagem, lá em agosto de 2012, na UPE, fui informado sobre a necessidade e a responsabilidade de ser um aluno compromissado com a produção do conhecimento, em grandes linhas, plantaram a semente sobre a produção desenfreada que, por muitos anos, estaria no topo das minhas prioridades. Por muitos anos esse aviso ressoou nas minhas decisões e opções acadêmicas, onde eu visava, sobretudo, a produção descontrolada como sinônimo de qualidade. Não que seja um ação exclusiva da Enfermagem, longe disso, pois percebo que é uma constante em muitos cursos da área saúde de forma geral.

A nossa produção é balizada por uma métrica de produtivismo que deixa em muito a desejar a qualidade dos escritos e publicações, tomo como exemplo eu mesmo que por anos só queria uma publicação — a discussão sobre revistas predatórias não era presente na minha formação, tampouco posso afirmar que já existia essa formulação tão concreta quanto hoje — em qual revista fosse (e consegui a primeira em uma revista predatória que nos cobrou algo em torno de R$ 1.500,00 reais), almejando a famosa aprovação na residência. É nesse período que começam a plantar uma ideia de produção desmesurada desde o primeiro dia que você começa a graduação e quase como uma ferida crônica, dificilmente cicatriza por vias comuns. A famosa residência é um eixo mobilizador de produção, inclusive. Artigos, monitorias, extensão, pesquisa, CR>9, etc., métricas que desde sempre são exigidas e ensaiadas para que possamos ser considerados os verdadeiros “alunos exemplares” — trocando em miúdo, além do produtivismo, também é incitado a competição e os “autos” da vida.

Dificilmente esse processo de produção em massa é interrompido (especificamente na Enfermagem falo aqui), exceto quando temos momentos que somos convidados à reflexão que coloca em questão toda a nossa “produção” que sempre objetivou um ineditismo e impacto nas revistas que, no fundo no fundo, de impacto não tem nada. Para sair do bê-á-bá e complexificar essa questão, não custo mencionar que essa produção está atrelada, necessariamente, ao neoliberalismo que as nossas universidades públicas em geral, e a pós-graduação (um beijo Qualis) em específico, abraçaram de forma sorrateira e perigosa. Não quero julgar se isso é o correto ou não, e nem vou, mas gostaria que fizéssemos esse exercício que, por ora, não nos custa nada. Um outro ponto que também ganha relevo nisso tudo, é o quanto o positivismo ainda está atrelado à noção de ciência “de verdade”, aqui estou me remetendo às ciências que se utilizam dos inúmeros testes e formulações estatísticas para chegar a um resultado que, em uma concepção longe de ser a realística e repleta de julgamentos, se diz neutra. Sabemos que não é isso. Essa ciência, no entanto, é a que ganha espaço, financiamento e destaque na maioria dos casos. E necessariamente, a partir deste tipo de ciência, vários pesquisadores e agências de fomento balizam e ditam o “tempo” de gestação das pesquisas que não possuem um delineamento quantitativo, igualmente pesquisas de cunho teórico que sequer são consideradas. Entendem como o problema possui várias questões?

Na minha concepção o perigo da produção em massa reside na perspectiva da produção de ciência que nos é apresentado: eticamente frágil, meramente reprodutiva e que desconsidera o tempo de formulação e maturação de ideias, hipóteses e insights para a construção de um conhecimento de qualidade, sólido, direcionado e que deve ser politicamente engajado e situado, não menos que isso. No entanto, quando levamos em conta como a cascata de produção de ciência no Brasil acontece, compreendemos porque muitos de nossos colegas gozam disso que chamamos de publicação. Eu mesmo fui, por muitos anos, assim. E não me culpo, não naquela época, pois não compreendia os perigos que as narrativas da produção maquínica possuíam e possuem. O que me surpreende é que temos inúmeros colegas que estão se doutorando nessa perspectiva e quase que como numa receita de bolo, só vão reproduzir um conjunto de ideias para a produção de uma “nova” totalmente dentro dos limites convencionais da “ciência”.

Longe de mim de dizer o que é ou não correto, mas me coloco nessa posição hoje por compreender como fui induzido desde os primeiros dias na universidade, em ser um aluno que produz: aquele que publica em várias revistas (cada vez mais internacionais); aquele que sempre tem um textinho pronto para soltar em alguma revista; aquele que sempre quer dizer aos quatro ventos que é um workholic; aquele que sempre quer contribuir no texto do colega só para levar o nome na coautoria. Acredito fielmente que não quero ocupar essa posição, tampouco ser o gênio que sempre vai tirar um texto da cartola em alguns dias. Como já falei algumas vezes, defendi minha dissertação há dois anos e até hoje tem um texto que não consigo dar conta dele, seja pela complexidade analítica que o mesmo demanda (e que eu não estou disposto ainda para encarar), seja por uma necessidade minha de que preciso “maturar” as ideias para construir um texto sólido e que traga alguma contribuição para a ciência e o grupo social que me engajei à época, enfim.

Sei que as regras atuais do jogo para quem almeja ser professor universitário (e até mesmo para nós enquanto bolsistas da pós-graduação) é de que precisamos publicar, publicar e publicar, mas será que a nossa única saída é publicar 5 textos por ano em que nossa participação não ultrapassa os 40% na maioria deles? Será que só porque é o caminho e as regras do jogo estabelecidas, até então, para ingressar no ensino superior público, que devemos, necessariamente segui-las? Sim, sei que é um longo debate e discussão e que também demanda uma articulação política, mas pior do que não fazer nada, é aceitar o que já está dado. Fica a reflexão.

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Alef Santana

Pisciano com ascendente em áries, Pernambucano e extremamente risonho. Contato: allef.diogo@gmail.com// Instagram: aleef_santanaa