A discussão sobre não-monogamias na saúde é rasa e moralista

Alef Santana
4 min readDec 17, 2021

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Há um tempo que tenho me reservado e não publicizado o que escrevo nas horas vagas ou ainda nos meus momentos mais vulneráveis, mas sou um leitor contínuo e preciso confessar que as últimas leituras que tenho feito sobre as perspectivas de cuidado e saúde para vivências de pessoas não-monogâmicas, em especial as políticas, são tão profundas quanto um pires. Vamos deixar uma coisa bem clara: todo fenômeno social demanda leitura e estudo. A não-monogamia não seria diferente, e certamente, para nós que estamos próximos com áreas mais teóricas — como as ciências sociais e humanas em saúde, e a saúde coletiva, realizamos um esforço muito grande para que seja possível avançar no debate e nas formulações necessárias e importantes para às vivências desses sujeitos. Acredito ser um movimento de respeito com o outro e com tudo que já foi produzido antes, e que está sendo produzido.

Não vou fazer críticas a ninguém direcionado, mas muito me incomoda, por exemplo, ver páginas de Instagram e ou Facebook sempre batendo na mesma tecla das ISTs em pessoas que são não-mono e/ou LGBTI+. Não preciso nem pontuar por quais motivos acredito e que defendo que isso seja discutido a partir de uma outra perspectiva que não medicalize, ou moralize as pessoas. É uma herança que muitos colegas da saúde carregam com si, muito pela forma que nós nos formamos na universidade — centrado sempre em aspectos biomedicalizantes, universais, ahistóricos e apolíticos. Uma perfeita fórmula para reproduzir tudo que há de mais nojento na nossa sociedade, carregado de moralidade, discriminação, subalternização, etc. Sempre fico incrédulo quando falo sobre perspectivas outras que não seja um cuidado à saúde de testar, tratar e controlar e as pessoas me olham como se fosse algo de outro mundo ou que minhas pesquisas não possuem um peso e valor social tão quanto a delas que vivem em laboratórios, etc. — O livro da autora Soraya Fleicher (Descontrolada: uma etnografia dos problemas de pressão) é interessante para pensar, por exemplo, como um simples posto de saúde é carregado por ações e práticas, conscientes ou não, que vigia e pune as decisões dos indivíduos que não seguem as linhas das diretrizes da OMS, MS, etc. Tem algo mais Estado do que isso? E os próprios profissionais de saúde adoram reproduzir essa lógica, inclusive a nossa querida e militarizada Enfermagem.

Certamente, não estou falando de saúde aqui naquele blablabla que a OMS considera ser saúde, como um completo bem estar bio-psico-social-cultural-espiritual-coloquealgomaisaqui-etc. Se você perguntar o que é saúde para qualquer estudante da saúde nos primeiros 2 anos, ele vai ter essa resposta decorada na cabeça dele, garanto. A perspectiva de saúde que acredito ser interessante para a gente pensar um pouco mais sobre questões estruturais e estruturantes, vem mais da ideia de que esta não é algo universal, tampouco aquilo que denominaram como estar doente ou não e que ultrapassa o plano da doença física, doença vista, doença dita — recomendo a leitura sobre sofrimento social, estou me debruçando sobre esse referencial na minha tese e cada vez que compreendendo um pouco mais sobre o assunto, percebo o quanto é necessário para ele ser discutido nos cursos de saúde.

Bom, voltando. Fiz uma fala um tempo desses em um evento sobre não-monogamias e trouxe alguns desses pontos mais teorizados, claro, para que fosse possível a galera compreender como a saúde é ampla, e cheia de contradições. Falar sobre parentalidades, família e saúde dos sujeitos nos diferentes contextos sociais, é tão importante quanto discutir o funcionamento do fígado e como este pode ser acometido por uma cirrose ou hepatite. E não estou dizendo aqui que não se fale sobre isso, porque se FALA. E muito. Mas fala sobre famílias monogâmicas, parentalidades monogâmicas, saúde dos sujeitos nos diferentes contextos sociais MONOGÂMICOS. E assim, a gente vai reforçando uma visão universalista e que possui o “outro” como o diferente e, portanto exótico.— o etnocentrismo puro aqui. A situação só piora quando racializamos a discussão, preciso nem mencionar, né?

E não, não me surpreendo por nossa formação ser assim. Hoje entendo do porquê que é construído dessa forma, que é apresentado dessa forma. E veja só, ainda hoje com as coisas um pouco mais possíveis de serem discutidas do que antes, ainda me deparo com noções de colegas e amigos que veem a não-monogamia como uma fase, que me expõe à infecções, em que eu não quero nada sério porque eu não encontrei uma pessoa que me fizesse ficar louca por ela. Não há o respeito pela individualidade, tampouco o esforço para ler e estudar sobre uma outra vivência que seja diferente da sua, tão padrão, normativa e universal. São esses profissionais, inclusive, que estão nos postos de saúde atendendo pessoas que coabitam com 2, 3, 4, pessoas; que não querem ter filhos e que se veem, regularmente, em uma corda bamba quando precisam preencher um simples formulário em que lhes é perguntado sobre casamento, relacionamentos, filhos. E o que falar do posto de saúde? ou melhor, da estratégia da saúde da família? Qual família atende essa estratégia?

Pode parecer um pouco repetitivo tudo que já falei aqui pois é algo que sempre pontuo nas minhas falas, diálogos, conversas, mas acredito que precisamos estar pautando tudo isso em todos os espaços que ocupamos, pois quem sabe assim, um dia, possamos pensar uma assistência à saúde dos indivíduos, de fato, integral, equânime, como preconiza a CF e o SUS. É pensando nisso tudo, inclusive, que pretendo escrever um livro sobre a não-monogamia na saúde, mas diferente do meu primeiro — o bixa ex-monogâmica, a ideia aqui não é contar minha experiência ou a minha visão unicamente, mas fazer todo um levantamento histórico de como a não-monogamia é interpretada e reproduzida nesse cenário tão normatizador que é a saúde, mas que é tida como um espaço de produção de cuidado e cura. Contradição pura. Enfim, ainda não há previsão para o seu lançamento, o doutorado está me consumindo mais do que esperado.

Referências:

eu mesmo.

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Alef Santana

Pisciano com ascendente em áries, Pernambucano e extremamente risonho. Contato: allef.diogo@gmail.com// Instagram: aleef_santanaa